Resenha: Olhos D'Água por Conceição Evaristo

Com palavras fortes, pesadas, com neologismos, com composições-intensidade e muita sensibilidade, Conceição Evaristo nos traz uma coletânea de 15 contos cheios de poesia sobre o amor, a morte e o cotidiano negro em "Olhos D'Água".


Título:
Olhos D'Água
Autora: Conceição Evaristo
Editora: Pallas
Páginas: 116
Ano: 2014
Sinopse:
"Em Olhos d’água Conceição Evaristo ajusta o foco de seu interesse na população afro-brasileira abordando, sem meias palavras, a pobreza e a violência urbana que a acometem. Sem sentimentalismos, mas sempre incorporando a tessitura poética à ficção, seus contos apresentam uma significativa galeria de mulheres: Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, a menina Zaíta. Ou serão todas a mesma mulher, captada e recriada no caleidoscópio da literatura em variados instantâneos da vida?Elas diferem em idade e em conjunturas de experiências, mas compartilham da mesma vida de ferro, equilibrando-se na “frágil vara” que, lemos no conto “O Cooper de Cida”, é a “corda bamba do tempo”. Em Olhos d’água estão presentes mães, muitas mães. E também filhas, avós, amantes, homens e mulheres – todos evocados em seus vínculos e dilemas sociais, sexuais, existenciais, numa pluralidade e vulnerabilidade que constituem a humana condição. Sem quaisquer idealizações, são aqui recriadas com firmeza e talento as duras condições enfrentadas pela comunidade afro-brasileira."

Conceição é mineira, de família pobre, e traduz toda sua vivência e experiência em brilhantes palavras. Escritora, professora e militante ativa pelos movimentos de valorização da cultura negra no Brasil, Conceição Evaristo, desde sua estreia em 1990, tem identidade versátil em sua escrita, e brinca com a ficção, o conto, a crônica e a poesia. "Olhos D'Água", publicado em 2014, foi finalista do Prêmio Jabuti - o mais tradicional prêmio do Brasil - na categoria "Contos e Crônicas".

Sem pudores para retratar a realidade da população afro-brasileira, violência urbana e desigualdade social, cada conto traz a história fictícia, porém muitíssimo realista, de uma personagem específica. 

O conto de abertura, que dá o título ao livro, soa quase como uma memória autobiográfica, mas os detalhes da história evidenciam que não - ou talvez apenas disfarcem. São tantas minúcias da relação mãe e filha que se repetem, à semelhança de um livro de receitas de família passadas adiante herditariamente, assim como os genes da melanina. E logo aqui, já nos deperamos com a temática principal e recorrente: a marginalização e sofrimentos do povo negro.

"Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, cantávamos, sorríamos. A mãe só ria de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos da minha mãe? Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía."

"Ana Davenga" fala sobre uma mulher cheia de personalidade, beleza, ginga, amor e sensualidade. O samba faz parte desse conto quase como personagem viva, a dança vive na vida de Ana. Ana adota o sobrenome do amado, Davenga, quande une seus destinos, seu barraco. Todos aqueles em volta de Ana parecem saber seu destino também, no alto do morro da favela, e nada além disso. Restava agora gozar a vida, até que não mais.

O Conto "Duzu-Querença" denuncia a vida na prostituição, alternativa facilmente escolhida contra a mendicância. Abandonada pelos pais na cidade grande - pais em busca de emprego para prover o sustento - a menina vive num bordel e tem ali as suas primeiras experiências sexuais.

"Ele, em cima da mulher, com uma das mais mãos, fazia carinho no rosto e nos seios da menina. Duzu tinha gosto e medo. (...) Ganhou muito dinheiro depois."

A história de "Maria" acontece dentro de ônibus. A chocante narração de uma mulher que encontra com um ex-companheiro ao tomar a condução com as compras retrata muito do que acontece com a mulher e o homem negro onde quer que ele for: ser morto por um crime que não é seu. O único crime de Maria foi se encontrar acidentalmente com o homem que um dia amou, pai de um filho seu.

Temas tabu, como o aborto, também são retratados. Mais comum do que tentam nos fazer imaginar. "Quantos filhos Natalina teve?" reflete sobre uma mulher que vive sua quarta gravidez. A pobreza, falta de instrução e de educação sexual, a violência e o abuso mostram a situação de uma mulher que desde os 14 anos viveu gravidezes indesejadas, e os danos psicológicos acumulados. O desfecho inesperado e cruel extremamente marcantes escancaram terríveis realidades.

Uma mulher em busca de amor e na luta pela guarda dos filhos é a história de "Salinda"; "Luamanda" descobre-se a si e a sua sexualidade. Em "O Cooper de Cida", a correria da vida para nas praias de Copacabana para contemplar o mar.

O fortíssimo conto "Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos" nos traz mais ainda da violência na favela, onde uma criança é vítima de bala perdida num tiroteio. A problemática da estrutura familiar também faz parte do enredo, gritando sobre o desespero de famílias desestruturadas, mães solteiras, crianças sem pai. A inocência aqui é completamente aniquilida pelos horrores do mundo real.

"Os moradores do beco onde havia acontecido o tiroteio ignoravam os outros corpos e recolhiam só o da menina. Naíta demorou um pouco para entender o que havia acontecido. E assim que se aproximou da irmã, gritou, entre o desespero, a dor, o espanto e o medo (...)"

Apesar de focar em personagens femininas, temos alguns protagonistas masculinos também. "Di Lixão" está a beira da morte. "Lumbiá" é um exímio vendedor de flores, mas que as troca por chiclete por causa do lucro. Em "Os amores de Kimbá" mais uma vez falamos da sexualidade negra, o que acaba se tornando um fetiche objetificador do corpo preto. Aqui, Kimbá é um jovem que sonha em sair da favela, com uma vida diferente. "Ardoca" comete suicídio por não mais aguentar. 

Provavelmente conto de maior destaque do livro, "A gente combinamos de não morrer" traz três personagens principais: Dorvi, Bica e Dona Esterlinda. A família lida com o medo, a sobrevivência, a honra, a violência, a morte, o amor, o casamento, os filhos, irmãos, esperanças...
"Deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida menos cruel. (...) Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro. (...) Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas."

Pra concluir, "Alowuya, a alegria do nosso povo", brinca com o idioma Iorubá e traz um pouco de leveza para um apanhado de histórias fortes e chocantes, com a mensagem de esperança por dias melhores. 

As palavras de Conceição Evaristo são mais do que arrebatadoras. São viscerais. E a realidade pode ser ainda mais férrea do que em seus contos. Mas a esperança permanece, o povo negro permanece. Isso não pode ser dito levianamente, não se pode esquecer da história e do sofrimento da gerações e mais gerações de um povo. Esperança é busca, luta e construção. Esse conjunto de contos é uma grande denúncia em forma de arte, e a sua beleza reside na resistência. E nesse mês, convido-os à leitura e a reflexão.

"E quando a dor vem encostar-se em nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando a solução."

--- Lorena Macêdo ---

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