Resenha: Com Sangue por Stephen King

"Com Sangue" é a mais nova antologia do Stephen King. Trazendo quatro contos com propostas bem diferentes, o escritor oferece um prato cheio para os seus leitores se deliciarem.

Título:
Com Sangue
Autor: Stephen King
Editora: Suma
Ano: 2020
Páginas: 400
Sinopse: "Do mestre do terror, uma nova coleção de contos que levará os leitores a momentos aterrorizantes da vida… e da morte. Brilhante em narrativas curtas, King já escreveu alguns contos que viraram sucesso em todo o mundo, como as histórias que inspiraram os filmes Conta comigo e Um sonho de liberdade. Neste livro, assim como em Quatro estações e Escuridão total sem estrelas, ele cria uma coleção única e emocionante, demonstrando mais uma vez por que é considerado um dos maiores contadores de histórias de todos os tempos. Este é um livro sobre amor, amizade, talento e justiça… em suas formas mais deturpadas. Em Com sangue, Stephen King reúne quatro contos com protagonistas inteligentes e complexos, que têm sua vida comum transformada por algum elemento inexplicável."

"O Telefone do Sr. Harrigan" conta a história de Craig, um garoto do interior, que é contratado pelo Sr. Harrigan, um homem idoso e extramamente rico, para realizar leituras diárias, bem como algumas tarefas em sua casa. Inicialmente, Craig não enxerga aquele homem como seu amigo, mas também não entende a dimensão do poder aquisitivo que ele tem e não possui qualquer ambição com relação ao patrimônio dele, embora todos na cidade comentem sobre o quão rico e avarento ele é. Eis que no auge do desenvolvimento dessa amizade, Craig precisa encarar um grande abalo emocional que se intensifica com uma sucessão de eventos misteriosos que podem estar diretamente ligados à ele e ao Sr. Harrigan.

Esta é a minha história favorita porque traz todos os elementos observáveis nos clássicos do King: fato ordinário que se torna em algo extraordinário e uma aparente impossibilidade de justificar a sua ocorrência de maneira racional. No decorrer das páginas, o autor proporciona reflexões sobre vida, morte, amizade, vingança e justiça, porém, do jeito King de ser, ou seja, nada parecido com uma lição, apenas uma proposta que está ali. Além disso, é um texto que permite diversas interpretações e que consegue ser complexo em sua simplicidade, pois, mesmo após o seu encerramento, o leitor se questiona sobre o fundamento sobrenatural do enredo e se isso teria outras repercussões mesmo depois do ponto final. Vale lembrar que nele há uma crítica feroz ao uso do celular, das redes sociais e da internet, de modo geral.

(...) Filmes são efêmeros, enquanto os livros, os bons, são eternos, ou quase isso. Você leu muitos bons livros para mim, mas há outros esperando para serem escritos. Isso é tudo que direi.

"A Vida de Chuck", por outro lado, é um conto que traz uma complexidade estrutural que só te permite descobrir a sua grandeza ao final, já que o que se inicia como o prenúncio do fim do mundo, por meio de uma visão ampla de diversas figuras que estão lutando contra o tempo para se unir aos entes queridos e entender a mensagem por trás dos outdoors e chamadas na TV e rádio que dizia "Obrigado, Chuck" e "39 ótimos anos", vai se voltando para algo mais intimista na medida em que o personagem do Chuck passa a narrar a sua vida, desde a sua infância até o ápice de sua vida adulta.

Esse foi um dos contos que me causaram uma estranheza desde o início porque ele é narrado de forma descrescente, de modo que em certos momentos é difícil acompanhar a proposta de King, que, talvez, só seja melhor compreendida com uma segunda leitura, desta vez, de trás para frente. Apesar de não ter entendido a totalidade do texto, achei interessante o misto de ficção científica e fantasia presentes em momentos crucias do conto, porém, assim como no conto anterior, não é possível verificar a origem mítica de tudo e tudo fica por conta da imaginação do leitor.

O cérebro humano é finito, não passa de tecido esponjoso dentro de uma caixa de osso, mas a mente dele é infinita. A capacidade de armazenamento é colossal, o alcance imaginativo além da nossa capacdade de compreensão. Eu não acho que uma biblioteca pega fogo quando um homem ou uma mulher morre, acho que um mundo inteiro cai em ruína, o mundo que a pessoa conheceu e acreditava. Pense nisso, moleque: tem bilhões de pessoas no mundo e cada uma delas tem um mundo dentro de si. A Terra que suas mentes conceberam. 

Já em "Com Sangue", tem-se a história de Holly, personagem da trilogia Bill Hodges, que entra em uma investigação sobre a explosão de uma bomba enviada para uma escola e que vitimou diversas crianças. A origem desse assassinato parece estar ligado à um repórter que estava cobrindo a tragédia e que pode não ser aquilo que todos esperam. Na medida em que Holly se aprofunda na sua busca, outros aspectos a respeito da sua vida são abordados, como a sua relação com a mãe, a doença do seu tio, o desenvolvimento do seu trabalho na Achados e Perdidos, bem como a relação com todos os seus parceiros profissionais, que acabam se tornando sua verdadeira família.

O ritmo desse enredo é eletrizante e há diversos acontecimentos para acompanhar, já que King nos presenteia com diversos pontos de vista. Uma das principais críticas feitas pelo autor consiste na máxima de "notícias com sangue vendem" e aborda não só as questões ligadas aos profissionais da comunicação que cobrem essa área, como também ao consumo de tragédias pelas demais pessoas - o que seria perfectibilizado pelo sentimento de alívio de que mesmo sendo triste, estava tudo bem pois aquela ocorrência tão terrível não teria acontecido consigo ou com pessoas a quem se ama. Entretanto, apesar de ter gostado muito, me senti frustrada por ter descoberto eventos importantíssimos da trilogia Bill Hodges e Outsider, já que ainda não os li, portanto, quem não leu: cuidado com os spoilers.

(...) Porque eu acredito no inacreditável. Não quero, mas acredito.

"Rato" encerra a antologia e possui como foco um recorte da vida de Drew, um escritor que sonha em escrever um romance depois de fracassar miseravelmente durante anos. Assim, quando surge a ideia para que ele escreva uma história de faroeste, e as coisas parecem estar absolutamente bem desenvolvidas em sua cabeça, ele se isola na cabana da família para esse fim. Em um primeiro momento tudo ocorre como esperado, porém, passados alguns dias ele começa a apresentar sintomas gripais e uma forte tempestade ameaça deixá-lo preso no lugar. Com medo de ir embora e perder a capacidade de escrever, ele insiste em continuar na cabana, ignorando todos os pedidos de retorno de sua esposa. A medida em que ele vai adoecendo, o jeito com as palavras parece se esgotar e ele não sabe mais o que fazer... até que um pacto lhe é oferecido.

King é mestre em trazer excelentes histórias sobre escritores e essa não é diferente. Nesse conto, em especial, é perceptível o ritmo crescente da narrativa, que vai desde a concepção da ideia inicial do livro até a sua execução, e mais, ao possível bloqueio criativo de Drew. É bem interessante espiar a mente de um escritor, principalmente de um que está tentando conceber seu primeiro romance. Toda a angústia e incerteza permeia cada página. Para além de trazer um ambiente claustrofóbico, o Mestre do Horror recria um conto de fadas em uma versão bastante macabra e que apresenta nada menos que um pacto fáustico de arrepiar! Esse conto me deixou conectada do início ao fim. Apesar de ser um pouco mais extenso, possui uma fluidez maravilhosa e com certeza disputa o favoritismo dessa obra.

(...) A realidade era profunda e era distante. Guardava muitos segredos e continuava eternamente.

O livro "Com Sangue" é o tipo de antologia que não se lê pausadamente, mas sim se devora vorazmente! Cada conto possui características interessantíssimas e, de certa forma, se conectam por trazer em sua essência uma abordagem sobre os métodos de comunicação que temos e a forma que lidamos com essas ferramentas, seja por meio da telefonia (o uso do telefone por Craig em "O Telefone do Sr. Harrigan"), da publicidade (a relevância dos outdoors em "A Vida de Chuck"), do jornalismo (as manchetes sangrentas em "Com Sangue"), seja por meio da literatura (o processo de escrita e tudo que tem no caminho até a publicação de um livro em "Rato"). É uma obra excelente e que certamente irá encantar os leitores do escritor.

(...) Tristeza é contagiosa, e o quanto isso é uma merda?

--- Isabelle Vitorino ---

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