Resenha: Aimó por Reginaldo Prandi

Se existissem contos de fadas na cultura negra, com toda a certeza "Aimó: Uma viagem pelo mundo dos Orixás" seria um deles. E nessa semana em que comemoramos a Consciência Negra, que forma melhor de celebrar nossa herança africana do que falando sobre a maravilhosa mitologia dos Orixás? Essa é a proposta de "Aimó", escrito por Reginaldo Prandi: trazer com leveza e dinamismo o entendimento do mundo dos Orixás, e quebrar o tabu construído em volta da belíssima mitologia Iorubá.

Título:
Aimó
Autor: Reginaldo Prandi
Editora: Seguinte
Páginas: 258
Ano: 2017
Sinopse: "Imagine se encontrar, de uma hora para a outra, em um mundo totalmente desconhecido onde você não conhece ninguém e ninguém demonstra saber quem você é. É o que acontece com uma menina nascida na África e levada para o Brasil para ser escrava, e que de repente acorda em um lugar estranho, habitado pelos deuses orixás e pelos espíritos dos mortos que aguardam o momento de seu renascimento. Ela não sabe mais o próprio nome nem lembra de sua família — está sozinha e não tem a quem pedir socorro. Por isso, aliás, ganha o nome Aimó, "a menina que ninguém sabe quem é". Tudo o que ela quer é retornar ao seu mundo de origem, mas para tornar isso possível, Aimó vai partir em uma longa jornada através dos tempos mitológicos, guiada por Exu e Ifá, e vai acompanhar de perto muitas aventuras vividas pelos orixás. Só assim poderá reunir o conhecimento necessário para fazer uma escolha que lhe permita, enfim, voltar para casa."

Reginaldo Prandi é professor de sociologia da USP e um dos maiores estudiosos da cultura afrobrasileira. Entre seus diversos livros publicados, um dos seus grandes sucessos foi o livro "Mitologia dos Orixás", que traz centenas de mitos da cultura Iorubá e suas ilustres deidades antepassadas. "Aimó" é criado a partir desse livro, mesclando toda a tradição com uma fábula fictícia que conta a história da menina esquecida, chamada "Aimó".

Um dos mais incríveis recursos utilizados pelo escritor nessa "contação de histórias" foi a utilização dos 'Odus'. Segundo a tradição Iorubá, tudo que acontece em nossas vidas é uma repetição do que já aconteceu um dia em histórias vividas pelos Orixás. Os Odus são os capítulos que identificam cada uma dessas histórias; no jogo de Búzios ou no Oráculo de Ifá, os Odus são representados. E cada Odu, dentre um total de 16, reúne um grupo de Mitos e Orixás relacionados. No final do livro, encontramos explicações mais detalhadas sobre esse tema. E, não por acaso, a história de "Aimó" possui 16 capítulos, cada um contando mitos de Orixás correspondentes aos seus Odus. 

E para começar, o primeiro capítulo, o primeiro Odu, "A menina Esquecida", introduz a história da pequena Aimó. Perdida no Orum, o mundo dos Espíritos, Aimó descobre que não é capaz de voltar para o mundo dos Vivos, a Terra, o Aiê, porque foi esquecida. Não existem memórias suas no mundo dos vivos para que ela possa retornar. E para sair dessa prisão, ela precisará da ajuda dos Orixás.

Aimó, depois de encontrar Olorum - o Orixá primordial, que criou os outros Orixás -, Ifá - o Orixá dos Oráculos, contador de histórias - e Exu - o Orixá mensageiro, da transformação - descobre que, em vida, foi levada de sua terra natal, num país africano, para o Brasil como escrava, após toda sua família ser morta. O tema escravidão é pincelado por diversas vezes no livro, mencionando seus horrores e o sofrimento da população negra africana sequestrada, escravizada e enviada para o Brasil dentro dos 'navios negreiros'. Essa sendo uma forma de nos lembrar como o nosso país foi construído e como foi a vida dos nossos antepassados - ainda hoje, mais de 50% da população brasileira é declaradamente negra, ou seja, descendente daquele povo.

O costume Iorubá atribuía a cada família um Orixá, baseado na sua ascendência, já que os Orixás representam deuses que um dia já foram vivos nesta Terra. Então o Orixá regente de uma pessoa, aquele que o representa e o protege, normalmente seria  passado hereditariamente. Mas Aimó não sabe seu nome de viva, nem de que familia veio, então ela não tem um Orixá regente. Aqui, vemos uma referência ao como o candomblé e a umbanda se estabeleceu no Brasil, onde não era possível descobrir a ascendência das famílias, então os praticantes da religião recebiam a ajuda de mães e pais de santo para descobrir seu Orixá regente. Para voltar à Terra, Aimó precisará de um Orixá regente - no seu caso específico, uma Orixá mulher, uma Aiabá. Não tenho certeza do motivo do autor pela escolha de uma Orixá Feminina, mas em vários momentos Aimó pede por sua mãe, o que indica uma decisão de afinidade, de preferência, como se a garota fosse escolher um modelo materno para se inspirar, de qualquer forma. E a jornada de Aimó se inicia.

Com a ajuda de Ifá e Exu, a garota viaja pelo mundo dos Espíritos para conhecer os mitos dos Orixás e escolher sua nova mãe. Durante sua viagem, entedemos também o sistema de oferendas que se costuma fazer para cada Orixá; também entendemos que, diferente de muitos deuses e deusas de diversas religiões, estes foram humanos um dia, e sua características, personalidades, qualidades e defeitos permanecem. Os Orixás não são seres perfeitos e inatingíveis, são seres muitos semelhantes a nós, porém dotados de forças e poderes diferenciados, recebidos por mérito para ajudar a humanidade.

"Presos à cintura, ela usava cinco lenços transparentes e esvoaçantes, e só.
Tinha o cabelo preso no alto da cabeça por fios de conta de vidro, os pés descalços, os braços carregados de pulseiras de ouro e de cobre.
Colares de peças miúdas de cerâmica, miçangas de louça e seguis de cristal preenchiam o vão entre seus seios nus e empinados.
Oxum dançava agora, já não caminhava mais."

A primeira Aiabá conhecida por Aimó é Oxum, Orixá do amor, da vaidade e da fertilidade, quando ela presencia a história de como ela trouxe Ogum de volta para o seu povo, atraindo-o de seu exílio com sua beleza. A segunda foi Euá, senhora dos segredos e das fontes, e Aimó conhece a Orixá através do conto onde ela engana a morte para salvar Orunmilá, outro nome para Ifá, e engravida dos gêmeos Ibeji. 

"Euá agarrou sua cabacinha de segredos, fez cara de indiferente e recebeu a morte sem demonstrar medo nem desgosto."

Em cada mito contado, nos deparamos com caracteristicas bastante humanas, como a luxúria. Não existem reprimendas a essas questões, a sexualidade é tratada com extrema naturalidade, como de fato deveria ser.

Aimó prossegue com Ifá e Exu ao seu lado, assistindo a cada história contada como se estivesse acontecendo diante de si. E assim ela conhece Iansã, a Orixá considerada hoje protetora do feminismo, deusa do vento, do raio, das tempestades, aquela que carrega os espíritos para o outro lado, para renascer.

"De um reino ao outro seu sopro percorria uma grande distância e chegava à forja e aviva o fogo.
E Ogum fabricava armas.
Quando a guerra ficava mais acirrada e a demanda de armamento aumentava, Iansã soprava mais forte."

Conhecendo a história Iansã e Xangô, no entanto, Aimó acaba passando por um situação inusitada, e com sua mania de acender tudo muito vivamente em sua cabeça, acaba por imaginar que causa um incêndio no reino de Xangô. A garota fica muito abalada e adoece.

Ifá e Exu levam a garota para Iemanjá, onde pela primeira vez Aimó interage como uma das Aiabás, a Orixá provavelmente mais popular no Brasil, deusa do mar, da maternidade e cuidadora do equilíbrio emocional, considerada mãe dos Orixás e de toda a humanidade. Lá eles contam com a ajuda também de Ossaim.

"Olorum não teve duvida:
nomeou Iemanjá mãe da cabeça de toda a humanidade.
E não há lugar no mundo
em que seu nome hoje não seja venerado. "

Finalmente curada, a viagem prossegue, sendo que Aimó fica cada vez mais indecisa diante de tantas Aiabás incríveis e de personagens distintas. Ela conhece ainda mitos sobre Obá, a Orixá dos serviços domésticos, e Nanã, deusa da lama, senhora da sabedoria, além de diversos outros Orixás masculinos e também os sem sexo, ou que podem ser homem e mulher ao mesmo tempo.

Chegada a data marcada, com todos os Orixás reunidos, Aimó deve fazer sua escolha para voltar à vida na Terra. A garota, mais inteligente e entedida, depois de tudo que ouviu e presenciou finalmente faz a sua esperada passagem para o Aiê.

Após a leitura, uma nota do autor finaliza explicações, e os apêndices de glossário de termos em Iorubá, nome dos Orixás principais e esquema do Oráculo fecham com chave de ouro. "Aimó" é um belíssimo resgate cultural afrobrasileiro, e possui grande potencial para iniciar pessoas à cultura Iorubá e do Candomblé, desmistificando preconceitos e imagens negativas, e transformando tudo isso num incrível "conto de Orixás".

"Nesses momentos de alegria e veneração, homens e mulheres e seus pais e mães Orixás
comemoram a reunião do Orum com o Aiê. Enquanto dura o toque dos tambores,
o mundo dos Orixás e o mundo dos humanos, o Céu e a Terra,
tornam-se de novo um mundo só."

--- Lorena Macêdo ---

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