Resenha: A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões por Louise O'Neil

Este não é um conto de fadas para crianças. Na verdade, este não é um conto de fadas. Também não é uma simples narrativa rasa, com inspirações feministas. Esta é uma história sobre sobrevivência.

Título:
A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões
Autora: Louise O'Neil
Editora: DarkSide
Ano: 2019
Páginas: 224
Sinopse: "Esqueça as histórias sobre sereias que você conhece. Esta é uma história diferente ― e necessária. E tudo começa no fundo do mar. Com uma garota chamada Gaia, que sonha em ser livre de seu pai controlador, fugir de um casamento arranjado e descobrir o que realmente aconteceu à sua mãe desaparecida. Em seu aniversário de quinze anos, quando finalmente sobe à superfície para conhecer o mundo de cima, Gaia avista um rapaz em um naufrágio e se convence de que precisa conhecê-lo. Mas do que ela precisa abrir mão para transformar seu sonho em realidade? E será que vale a pena? A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões chega para trazer um pouco mais de contos de fadas para a linha DarkLove, da DarkSide® Books. Mas não do jeito que você espera; aqui, a história original de Hans Christian Andersen ― e também suas versões coloridas e afáveis em desenhos animados ― é reimaginada através de lentes feministas e ambientada em um mundo aquático em que mulheres são silenciadas diariamente ― um mundo que não difere tanto assim da sociedade em que vivemos. No reino de ilusões comandado pelo Rei dos Mares, as sereias não recebem educação, não têm direito de fala, devem se encaixar em um padrão de beleza impossível e sempre sorrir. É neste cenário que a autora irlandesa Louise O’Neill apresenta uma história sobre empoderamento e força feminina. Com narrativa e olhar afiados, a autora ainda desenvolve aspectos do conto original que passaram batido, como o relacionamento de Gaia com as irmãs e as camadas complexas da Bruxa do Mar. A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões, que chega ao mundo acima da superfície da água com o padrão de qualidade que virou marca registrada da DarkSide® Books, mostra como, em um reino comandado pelo patriarcado, ter uma voz é arriscado. Mas também como querer usá-la é uma atitude extremamente poderosa e valiosa. Ainda mais em tempos tão sombrios."

Inspirado na combinação entre o conto original de Hans Christian Anderson, de 1837, e o filme produzido pela Disney, de 1989, "A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões" traz novos elementos que emergem na construção de uma história bastante sombria - e cruelmente realista. A releitura de Louise O'Neil remodela drasticamente nossas memórias infantis da Pequena Sereia.

Conhecemos aqui a mais bela sereia de Mar Verde, dona de muitos nomes ao longo da história: Gaia, Muirgen, Grace... Com aparência semelhante à nossa conhecida de longa data, Ariel - longos cabelos vermelhos, olhos azuis profundos e cauda de escamas verde reluzentes, dona da mais bela voz  - Gaia na verdade se baseia com maior profundidade na sereia do conto antigo. O universo desta pequena sereia não tem nenhum musical divertido ou companheiro marinho de aventuras aos quais nos acostumamos. 

Gaia é a filha mais nova e favorita do Rei dos Mares e acaba de completar 15 anos. A garota perdeu a mãe ainda bebê, com apenas 1 ano de idade, em circunstâncias misteriosas; além de um relacionamento problemático com as irmãs, Muirgen é também explorada de diversas formas por seu pai, e está noiva do assustador Zale, general do exército de Mar Verde.

Dadas tais circunstâncias, não é de todo surpreendente que a sereia se apaixone à primeira vista por Oliver durante um naufrágio e decida deixar seu palácio submerso e toda sua vida para trás para integrar o mundo dos humanos. Como toda mulher oprimida numa sociedade patriarcal, Gaia só deseja ser livre.

Vovó raspa minhas escamas, ignorando meu suspiro de dor. (...) 'A beleza não vem de graça', diria ela. 'Há sempre um preço a se pagar', e aí ela gesticularia para a própria cauda, com suas doze pérolas. Minha avó não nasceu na realeza, então de fato é esperado que que ela seja grata pelo adorno, concedido a ela por seu genro, o Rei dos Mares (...)

A automutilação compõe a rotina das mulheres sereias, que precisam costurar pérolas na sua própria carne para agradar os tritões e exibir seu elevado status social. O assunto é abordado de forma recorrente, em vários momentos em que Muirgen e as outras sereias recusam comida para manter seus corpos tão perfeitos quanto lhes é exigido. As princesas ouvem sempre o quanto a maior qualidade de uma mulher é sua beleza, chegando a se tornar inadmissível na corte mulheres "diferentes" - sendo muitas delas banidas junto aos indesejáveis para Longemar.

A tradição das sereias, ao completar 15 anos, é nadar até a superfície; e como é esperado, Gaia emerge até a linha do horizonte junto com o sol nascente. Essa parte da história todos nós conhecemos bem: um navio é surpreendido por uma tempestade em alto mar e naufraga, e um jovem humano é resgatado das ondas revoltas pela pequena sereia, e deixado à beira da praia. No entanto, para salvá-lo, Gaia desafia as terríveis Russalka, negociando a vida do "seu humano" - Oliver - e colocando em risco a trégua da guerra entre o Reino dos Mares e o Mar de Sombras, governado pela Bruxa do Mar. Após o resgate, a garota retorna a sua vida de sempre.

De volta à sua rotina sufocante, Gaia se vê obrigada a aproximar-se do tritão com quem deverá se casar quando completar 16 anos. Zale é a personificação de tudo o que um homem produto da cultura do estupro pode se tornar. Ele é um homem muito mais velho que ela, injusto e violento. Após descobrir sobre a aventura da pequena sereia, Zale passa a chantageá-la, rompendo com os limites do consentimento e refletindo também as inclinações pedofílicas não só dele, mas da maioria dos homens no reino sirênico. Mesmo assim, Cosima - irmã e, durante a infância, melhor amiga de Gaia - se ressente. Ela era a primeira escolha para o casamento, prometida desde a infância pelo Rei dos Mares ao general. Mas quando Gaia atingiu a puberdade e se mostrou a mais "especial" - a mais bela, mais parecida com sua mãe e a portadora da mais bela voz - o tritão mudou de ideia. Cosima foi trocada por Muirgen. A pequena sereia se viu presa num compromisso pertubador e perdeu a sua melhor amiga.  

'Observa o peixe e você entenderá'. (...) O peixe macho perseguindo a fêmea sem parar, mordicando suas barbatanas, beliscando sua cauda, esperando que ela caísse em exaustão para enfim reinvindicá-la como sua. Eu não sabia dizer se eles estavam brigando ou fazendo amor. Talvez no final seja tudo a mesma coisa.

Por tais experiências e pela forma completamente deturpada de entender um relacionamento conjugal a garota acaba nutrindo cada vez mais sua paixão por Oliver, esperando pela perfeita história de amor. 

Ela não deixa de pensar também no desaparecimento de sua mãe, Muireann. As histórias contam que Muireann foi capturada e morta por humanos, e Gaia acredita que indo para além da superfície irá descobrir mais sobre o acontecimento. E em meio a tanto medo e insegurança, Gaia toma sua decisão. Ela deixa o seu reino, e vai até a Bruxa do Mar.

Após atravessar Longemar - aquele local para onde os indesájaveis habitam miseravelmente, ela alcança o Mar das Sombras. Ceto - a Bruxa do Mar - é tudo o que ela jamais imaginara, diferente de todas as histórias contadas. Fora dos padrões, bela, independente e poderosa, muito poderosa! Ceto deixa sua cabeça cheia de questões. Por que Ceto foi banida? Por que ela tem poderes? Quem são as Russalka? O que realmente aconteceu à sua mãe? Por que Mar Verde é governado sob tantas lei e regras terríveis?? E afinal, concede o desejo da pequena sereia é concedido porém, a um preço muitíssimo alto.

Grace se transforma no que tanto desejara - uma garota humana. Na mesma praia que ela antes havia deixado Oliver, ela é encontrada por ele. Na sua nova vida, ela mora numa mansão, a mansão da família Carlisle. Ela conhece outros humanos, constatando duas curiosidades: os homens humanos muito parecidos com os tritões; as mulheres humanas são bastante diferentes das sereias. Outras descobertas são feitas pela pequena sereia, descobertas incitadas pela sua visita a Ceto. O mundo humano não é um mar de rosas. Amor à primeira vista... talvez seja outra coisa. E finalmente Grace descobre tudo o que buscava sobre sua mãe. Entre bebidas e pesadelos, quartos secretos, quadros, histórias de pescador, festas e noites dolorosas, a vida da garota toma outros rumos muito diferentes do que imaginávamos.

E, bom, qualquer coisa a partir daqui seria mais do que um spoiler, não acham?

A mais importante mensagem que a pequena sereia nos traz é que podemos ser fiéis a nós mesmas, podemos respeitar nossa identidade e acreditar que somos capazes de ser autossufucientes, podemos quebrar os padrões. De beleza, de relacionamentos abusivos, de expectativas irreais. Nenhuma vida, no fundo do mar ou acima dele, é um conto de fadas, mas mudanças e erros fazem parte da libertação. Sobrevivência. Nossa pequena sereia é ingênua, mas ela é capaz de enxergar as correntes que envolvem seu corpo para transformá-las nas correntes que a protegerão e fortalecerão. 

"A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões", escrito por Louise O'Neil, é um hino feminista, um transformador de ilusões infantis que até hoje, nós, mulheres, somos levadas a acreditar. E é muito mais do que isso.

'Quem sou eu agora?
'Quem é você?' Ceto repete meus pensamentos. (...) a pergunta mais importante é: quem você vai ser? Quem você é livre para ser agora?'

--- Lorena Macêdo ---

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