Resenha: O Beijo no Asfalto por Nelson Rodrigues

Enquanto leitora, sempre tive alguns planos literários. Um dos principais é conhecer mais escritores brasileiros, principalmente os nomes que inovaram de algum modo o cenários da literatura no Brasil. Assim, ler Nelson Rodrigues era algo que invariavelmente iria ocorrer, porém, aconteceu antes do que eu imaginava e me conquistou mais do que eu pensava.

Título:
O Beijo no Asfalto
Autor: Nelson Rodrigues
Editora: Nova Fronteira
Ano: 2019
Páginas: 160
Sinopse: "Arandir, um homem casado, beija a boca de outro homem, que acaba de ser atropelado, realizando assim o último desejo deste. A cena é presenciada por Amado Ribeiro, um jornalista que resolve tirar proveito do episódio. Com o destaque do caso, Arandir se isola, sofrendo com a descrença de todos à sua volta, e se vê compelido a um destino que não consegue modificar. Sexualidade, intrigas, falta de ética da imprensa e da polícia e crise familiar são os ingredientes desta famosa peça de Nelson Rodrigues, escrita em 1960."

Arandir é um homem de vida comum. É casado com Selminha, trabalha e têm problemas com o sogro, Aprígio. Certo dia, voltando do banco, um homem é atropelado na sua frente. Institivamente, ele corre até a vítima e se aproxima dela, porém, surpreende a todos os presentes ao beijá-lo na boca. Dentre os espectadores estava Amado Ribeiro, um jornalista espertalhão, que decide usar o caso como forma de se autopromover e, ao mesmo tempo, de ficar em bons termos como o delegado Cunha, com quem tinha tido um desentendimento.

Assim, aquele singelo beijo ganha as manchetes dos jornais e muda completamente a vida de Arandir. Sujeito à piadas de todo o tipo no ambiente de trabalho, desacreditado pelos vizinhos e objeto de desconfiança pela sua esposa. Esse homem simples se torna vítima de diversas armadilhas que visam alçá-lo ao patamar de criminoso ao transformar aquele gesto em um indício de um crime passional com reviravoltas surpreendentes, onde nada nem ninguém é o que parece.

Nelson Rodrigues é considerado o principal dramaturgo brasileiro, esta peça, por exemplo, foi um pedido da atriz Fernanda Montenegro. Escrita em apenas 21 dias, a história foi publicada no início da década de 60 e traz diversos assuntos polêmicos em suas poucas páginas. É interessante observar que a forma de abordagem do escritor está longe de ser floreada ou rebuscada, pelo contrário, com uma escrita extremamente ágil e uma linguagem direta, ele direciona os leitores de maneira eficaz para o cerne dessa tragédia.

Os diálogos apresentados no decorrer da peça alternam as perspectivas dos principais personagens, mostrando não só as dificuldades enfrentadas pelo Arandir e sua família, como também, toda a armação idealizada por Amado e Cunha. O interessante é que esses diálogos são interrompidos sempre por um sinal de ponto final, deixando os leitores sem saber o que poderia vir a seguir, e qual a melhor hipótese para completar essa lacuna. No começo, senti um certo estranhamento com essa interrupção brusca, mas depois fui me habituando.

Pelo que já narrei até o momento, vocês podem inferir que toda a controvérsia dessa história está centrada no beijo que foi dado por Arandir no defunto, em um momento de extrema tensão e sensibilidade. A questão da possível homoafetividade é tratada, em especial, sob a perspectiva do choque da sociedade em tomar conhecimento de um beijo entre homens que ocorreu publicamente e que foi parar nas manchetes dos jornais.

Isto é, se era algo que antes escandalizava apenas pela possibilidade de acontecer no privado, agora confronta cada um dos integrantes daquela comunidade pela certeza de que, de fato, pessoas do mesmo sexo se relacionavam. E isso é algo para se refletir pois, na época, o país estava em vias de sofrer um golpe, cujos líderes reprimiam aqueles que tinham comportamentos considerados "desviantes"*. No entanto, com isso não quero dizer que o escritor tivesse a intenção de defender o grupo LGBTQIA+ e ir contra aos ideais apregoados pelos poderosos, já que, segundo Flávio Aguiar, professor da USP que assina o posfácio da edição, Nelson Rodrigues apoiou o golpe**. É somente um dado a mais para tecermos um paralelo.

Sobre os personagens, um dos grandes destaques certamente é o jornalista, Amado Ribeiro. Desprovido de qualquer humanidade no trato jornalístico, ele não precisa de qualquer incentivo para tomar as decisões que tornaram a vida de Arandir e de sua família em um verdadeiro inferno. Pelo contrário, ele é quase um gênio do mal, que age reforçando psicologicamente no Cunha todas as suas ideias de tornar aquele ocorrido em uma tragédia policial muito suculenta a partir da qual ambos poderiam obter prestígio e reconhecimento social.

Apesar de curta e dinâmica, essa peça traz algumas reviravoltas que chocam os seus leitores, fazendo-os se renderem aos caprichos do escritor. Além disso, mesmo diante das dificuldades iniciais em me acostumar com o estilo de escrita de Nelson, ao fim, me encantei com a peça e fiquei ansiando por conhecer outras obras, especialmente, aqueles com bastante drama. Finalmente, indico essa obra para aqueles que gostam de histórias curtas, com personagens emblemáticos, escrita ágil e algumas reviravoltas intrigantes.  


"Eu acho, entende? Acho que, nunca mais, em emprego nenhum. Acho que em todos os empregos, os caras vão me olhar como se. As mesmas piadinhas, em toda a parte."

* Recomendo a leitura do artigo do sítio eletrônico "Memórias da Ditadura".
** Informação corroborada pela FGV.

--- Isabelle Vitorino ---

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