Resenha: Jonathan Strange & Mr. Norrell por Suzanna Clarke

Que Jane Austen é uma autora incrível, isso todos nós sabemos. Mas e quando descobrimos uma autora que mistura o estilo crítico dessa consagrada literária com diversos outros autores, formando um mundo todo seu? Venham comigo desbravar uma Inglaterra do começo do século XIX de um modo que você nunca imaginou!

Título: Jonathan Strange & Mr. Norrell
Autor (a): Suzanna Clarke
Editora: Seguinte
Páginas: 824
Ano: 2015 (2ª Edição)
Onde comprar: Saraiva
Em 1806, a maioria da população britânica acreditava que a magia estava perdida há muito tempo - até que o sábio Mr. Norrell revela seus poderes, tornando-se célebre e influente. Ele abandona a reclusão e parte para Londres, onde colabora com o governo no combate a Napoleão Bonaparte e coloca em prática seu plano de controlar todo o conhecimento mágico do país. Tudo corre bem até que Jonathan Strange, um jovem nobre e impetuoso, descobre que também possui talentos mágicos. Ele é recebido por Norrell como seu discípulo, mas logo os dois começam a se desentender… e essa rixa pode colocar em risco toda a Inglaterra. Misturando ficção e fatos históricos, Jonathan Strange & Mr. Norrell levou dez anos para ser escrito e foi baseado em uma extensa pesquisa da autora sobre a história da magia inglesa. O livro combina a mitologia fantástica de J.R.R. Tolkien com a comédia de costumes de Jane Austen, de quem Clarke é admiradora confessa, e ainda acena ao romantismo, à observação social de Charles Dickens e à literatura gótica de Anne Radcliffe. Recebeu o Hugo Award, um dos prêmios mais importantes no gênero fantástico, além de ter sido indicado ao Man Booker Prize e eleito o melhor livro do ano pela revista Time. Agora adaptado para a TV pela BBC, o livro recebe nova edição, com introdução do escritor Neil Gaiman.



Na Inglaterra do começo do século XIX, a magia torna-se um estudo teórico de extremo respeito e requinte. Magos teóricos são cavaleiros respeitados e sua profissão é algo visto como elitista e nobre. Dentro do Condado de York, onde um dos grupos de magos cavaleiros se reunia em determinados períodos mensais, surgi o jovem John Segundus. Esse proeminente jovem, ávido pelo aprendizado da magia, acaba de ingressar nesta respeitável sociedade e, em sua primeira reunião, lança a questão mais importante da magia atual: Por que a magia não é mais praticada?

Sim, embora isso soe estranho para nós, conhecedores das mais infinitas sagas, livros e trilogias que desbravam o campo da magia de um forma totalmente prática, no mundo em que se passa a história deste livro, a magia não é mais vista de forma prática a vários séculos, tornando-se um campo apenas para o estudo teórico.

Obviamente, essa impertinente, porém necessária, pergunta incomoda a muitos do grupo, que consideram uma afronta tal inquisição. Mesmo após bater de frente com os mais antigos do grupo, John Segundus não se abala e continua sua busca pela resposta do porquê do desaparecimento da magia. Sua incansável procura o leva a um senhor que atende pelo nome de Gilbert Norrell, que afirma não entender o propósito desse questionamento, pois ele mesmo é um mago prático a consideráveis anos.

Após uma demonstração de suas habilidades, Mr. Norrell abandona o conforto de seu lar no Condado de York e se dirige a Londres com uma missão: Trazer de volta a magia à Inglaterra, tornando-a uma respeitável e nobre ocupação inglesa. Atualmente, ele considera que o conhecimento da magia está, no ponto de vista de Mr. Norrell, totalmente equivocado, pois se baseia plenamente nos conhecimentos do Rei Corvo, um antigo Rei do Norte da Inglaterra, responsável pela disseminação da magia no continente há séculos atrás, e que, sem qualquer explicação, desapareceu, ainda sendo aguardado seu retorno por muitos.

Mas Mr. Norrell não estará sozinho nessa empreitada de trazer de volta a magia para a Inglaterra, pois eis que surge o talentoso Jonathan Strange, e, apesar de gênios e opiniões contrárias, ambos os magos se veem numa trama envolvendo criaturas do folclore irlandês, críticas sociais, guerras napoleônicas e profecias, onde tudo parece ser palco para o retorno desse antigo e poderoso Rei.

Inicialmente, precisamos falar da edição. Não entendi o que levou a Companhia das Letras a lançar esse livro pelo seu selo infato-juvenil, pois, apesar de ser um livro mais parado e que, apesar de diversas cenas de caráter mais gore¹ e momentos tensos, o livro traz algumas críticas que podem não ser muito acessíveis à jovens leitores. Porém, apesar desse estranhamento, a edição é um primor, seja na capa bem bolada, seja na sua tradução extremamente bem feita (tive a oportunidade de intercalar a leitura da edição brasileira com a original da autora, e devo dizer que não tive qualquer problema com tradução e revisão). Meus parabéns à editora.

Vamos falar então da história. Resumindo em poucas palavras: Esse livro é um primor!

Suzanna Clarke é uma admiradora da literatura inglesa do século XIX, e nunca escondeu que essa obra era uma homenagem à uma de suas autoras favoritas, Jane Austen. Logo você tem uma narração maravilhosa, com uma exposição de sociedade e críticas sociais que os admiradores dessa autora do período regencial logo vão se identificar. Mas ela não para em Jane Austen, mesclando à sua história diversos elementos de Ann Radcliffe, Shakespeare, Charles Dickens e até mesmo a Tolkien.

Esse é um livro de história alternativa. Ele terá personalidades reais ao longo da narrativa, seja no caráter político, seja no caráter literário (à propósito, Lorde Byron é um personagem ótimo nesse livro, e a relação dele com Jonathan Strange é quase cômica), assim como diversos eventos reais, porém agora misturados com os elementos fantásticos da história.Isso se mostra de maneira mais evidente nas diversas notas de rodapé do texto, que não são referências de outros autores e estudiosos à obra, como é o caso das que temos nas obras publicadas pela Zahar, mas são notas da própria autora, que faz menção à todas as referências da história. Essas notas são essenciais para o total entendimento da obra, para dar um panorama geral e específico e até para dar uma veracidade incrível a toda a narrativa.

Outro ponto incrível na história são seus personagens. Falando de seus protagonistas, tanto Jonathan Strange quanto Gilbert Norrell são personagens únicos e com personalidades bem distintas. Mr Norrell é aquela pessoa totalmente literal e teórica (O que considero irônico, pois ele abomina os mágicos teóricos). Sendo mago prático há anos, ele tem uma gama bem ampla de experiência e conhecimento, mas se atém aos livros totalmente. Jonathan Strange é tido como gênio, pois aprendeu magia de uma forma mais autodidata e experimental, acabando por criar seus próprios feitiços, quando lhe falta o apoio teórico.

Com suas cargas de qualidades e defeitos, ambos são personagens um tanto difíceis de lidar, mas, diferente de muitos, eu não consigo ser imparcial entre eles. Mr Norrell, a meu ver é uma pessoa totalmente egoísta, mesquinha, presunçosa, arrogante e hipócrita. Após tomar seu lugar como Primeiro Mago da Inglaterra, ele monopoliza todo o conhecimento da magia para sim, restringindo o uso até para o Jonathan, na época seu pupilo, que anseia pelo conhecimento. Reclama sobre magias que ele considera “não respeitáveis”, mas que ele mesmo as utilizou para atingir seu cargo. Sua vaidade também vai a níveis exorbitante e, na companhia de duas das piores pessoas da história, Drawlight e Lascelles, seu comportamento é medonho e abominável.

Jonathan Strange, é claro, não é nenhum personagem baseado em um herói de ideais arthunianos. Sua dinâmica com Lorde Byron é tão singular que o próprio toma notas do comportamento do Strange para futuros personagens. Ele é aventureiro e, por vezes inconsequente, o que o leva a caminhos um tanto ruins na vida, mas mesmo suas falhas são aceitas quando, pelo menos para mum, elas podem ser explicadas como consequências de atos do Mr Norrell ao longo da narrativa.

Mas não é apenas de seus protagonistas que esse livro respira. A dona Clarke dá um show quando se utiliza de uma criatura mitológica irlandesa, conhecida como sidhe. Esse tipo de fada não é nenhuma das que estamos acostumados. Em uma das notas de rodapé da história, é dito que, enquanto os humanos são muito mais razão, as fadas são totalmente magia, não tendo muita noção da lógica e comportamentos humanos. É aí que entra o Cavaleiro, que seria o maior antagonista dessa história. Ele não vê problema algum em matar e amaldiçoar qualquer personagem que o desagrade, enquanto os que ama, ele também consideram bem normal raptá-los para seu Reino, onde os força todas as noites a dançarem em seu baile macabro. O próprio Rei Corvo foi vítima de uma dessas fadas, tendo sido raptado quando bebê para os domínios do Reino Encantado.

O Rei Corvo em si é um personagem totalmente fora do que esperamos como um Rei. O primeiro capítulo em que o vemos agir é escrito com uma maestria tão sublime, que chega a merecer releituras!

Ainda falando de seus personagens marcantes, Childermass, Lady Pole, Stephen Black e Vinculus são os que nos brindam com as melhores críticas sociais ao longo dos livros. Através desses personagens vamos ver como eram tratadas as pessoa quando elas não detinham a cor de pele, posição, status e o gênero necessários para serem considerados “certos” diante da sociedade. Me arrisco a dizer que, se os protagonistas são o prato principal da trama, esses personagens são o tempero extremamente necessário para apetecer o paladar.

Definitivamente, "Jonathan Strange & Mr. Norrell" tornou-se uma de minhas leituras favoritas desse ano. É um livro onde a ação em si não acontece com frequência, mas que tem elementos únicos que formaram uma história única e fantástica!


“Existem apenas dois magos na Inglaterra. Como nos decidir entre eles? Quem pode dizer qual deles está certo e qual está errado?” – Pág. 598

“– E daí? – Replicou Childermass, melindrado. – Isso não é algo tão insignificante, é? Norrell é um home inteligente, Strange também. Têm as falhas deles, como todo homem, mas suas realizações ainda são extraordinárias. Decerto sou um seguidor de John Uskglass. Ou seria, se ele aqui estivesse. Mas o senhor deve reconhecer que a restauração da magia inglesa é obra deles, não dele.– Obra deles! – Zombou Vinculus. – Deles? O senhor ainda não entende? Eles são o encantamento que John Uskglass está lançando. Isso é o que sempre foram. E ele está lançando neste exato momento!”Pág. 795



---Marcel Elias ---

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