Resenha: Missoula por Jon Krakauer

A violência contra as mulheres é um dos principais problemas que uma comunidade tem que lidar. Não são raras as situações que é exigido por parte das autoridades uma postura não só proativa no tocante a coibição desses crimes, como também, uma forma incisiva de solução quando eles ocorrem. Entretanto, algo ainda mais preocupante deve ser repensado: o problema enfrentado pelas vítimas para levar esses casos a julgamento.

Título: Missoula
Autor: Jon Krakauer
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2016
Páginas: 488
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Missoula, em Montana, é uma típica cidade universitária americana. Para quem vê de fora, o local é algo idílico. No entanto, entre 2008 e 2012, o departamento de justiça americano investigou 350 acusações de agressão sexual na cidade, muitas perpetradas pelos jogadores do time local de futebol americano, idolatrados pela população. Neste livro assombroso, Jon Krakauer rompe o silêncio e mostra todo o drama que vivem essas mulheres. Numa investigação minuciosa, com ares de thriller jurídico, ele revela o tecido social e político que abafa esses casos. De forma corajosa, Krakauer questiona o sistema educacional e os caminhos legais que permitem essa epidemia de violência sexual.

Quando pensamos em um ataque violento, sempre associamos essa ideia a algo distante de nós e próximo de pessoas que não conhecemos. Mas e quando a violência rompe essa barreira e adentra as nossas casas nos vitimando ou tornando refém alguém que amamos? Como agir diante dessas situações, principalmente nos casos em que temos que enfrentar o duro golpe da descredibilidade e impunidade? É trabalhando essas nuances que Jon Krakauer se propõe a não só desnudar os meandros jurídicos que envolve a temática da violência sexual, como também, acompanhar essas vítimas depois dos ataques que mudaram para sempre as suas vidas.

Com foco em cobrir a dificuldade de se levar a julgamento os casos de vítimas de estupro em uma cidade onde os atletas se tornam sinônimo de "cidadãos modelos", somos levados pelo autor a observar as mais variadas implicações da atuação da justiça na cidade de Missoula nos Estados Unidos. Devo previni-los que não é uma leitura fácil haja vista que diferente dos livros ficcionais que abordam a temática, aqui temos um relato cru de acontecimentos que implicaram em uma grande transformação psicológica de mulheres que além de sofrer pela violência inesperada ainda tiveram que suportar os duros golpes contra a sua moral em decorrência da postura que a comunidade tinha com relação aos fatos alegados por elas.

É de conhecimento geral que os atletas nos Estados Unidos são tidos como exemplos a serem seguidos e recebem todo o apoio por parte do Estado. Esse sentimento se intensifica em determinadas localidades, sobretudo se ela for o berço de um profissional que ganhou destaque e levou o nome da cidade aos grandes centros urbanos do país através do seu talento para o esporte. As mulheres que contam a sua história para Krakauer também tinham esse sentimento. Muitas delas eram amigas de infância desses homens a quem todos tinham como herois, porém, infelizmente elas tiveram a sua confiança no outro quebrada por causa de atitudes altamente condenáveis e dolorosas praticadas justamente por esses homens.

Não deve ser segredo para ninguém que as mulheres que sofrem violência sexual tem que suportar uma dor tremenda. São tantas as maneiras que a sociedade tem de culpá-las que muitas vezes elas passam a figurar no polo contrário e ao invés de vítimas são tratadas como culpadas. Os argumentos são vários e vão desde "uma garota que ficou fazendo joguinhos" a "todos sabem que ela dorme com todo mundo porque com essa cara seria diferente", o que torna claro o uso daquela velha tática de quem não pode atacar o argumento e acaba atacando o argumentador. O que muitos esquecem é que isso não é um debate a respeito de qualquer trivialidade, mas sim uma afronta a moral de alguém que está tentando duramente que seja feita justiça.

Esbarrando no descrédito, muitas das mulheres que contam a sua história em "Missoula" passaram anos sem procurar o Poder Judiciário. Elas tinham exemplos daquelas que foram e acabaram sendo massacradas pelos advogados quando não enfretaram ainda o impecilho de ter uma defesa pífia e uma atuação do Ministério Público que poderia ser risível se não comprovasse de fato que quando o que está em jogo é a palavra de uma mulher contra a de um atleta - numa cidade fanática por esportes -, a vítima jamais terá chances.

Abro um parânteses para dizer que durante todo os momentos que estive com esse livro, lembrei da pesquisa realizada pelo IPEA em 2013 que apontava que para 65,1% (depois a porcentagem foi retificada totalizando 26% de concordância total ou parcial da afirmativa) dos brasileiros o comportamento feminino influenciava na prática de estupros. Analisando o posicionamento dessa pesquisa, para mim, ficou claro que para as pessoas que responderam dessa maneira a um enquete sobre violência sexual - independente da porcentagem verdadeiramente alcançada - há uma crença que a culpa está nas roupas usadas pelas mulheres, o horários que elas saem ou chegam de casa, a maneira como se portam em um flerte com o homem, a quantidade de bebida que consomem, os locais que frequentam, mas nunca, absolutamente nunca, a culpa está na existência de um estuprador. Tem algo muito errado nisso, não?

E não pensem que isso é pensamento de pessoas do "Terceiro Mundo", não. Pois o livro que estamos discutindo aqui hoje trata do sistema de justiça americano e da sociedade de lá. Ou seja, o pensamento de que a vítima é na verdade a culpada está impregnada por toda parte! Quando nos damos conta de que em pleno século XXI, vivendo sob a égide de um Estado Democrático de Direito, ainda se tem dificuldade em levar um crime a apreciação do Judiciário simplesmente porque existe um forte sentimento de que a sociedade é patriarcalista e as mulheres não passam de seres traiçoeiros em busca de vingança por um amor que não deu certo ou uma saída desconcertante, é algo mais assustador do que minhas palavras são capazes de dizer.

O problema é de proporções tão maiores do que mensuramos que recentemente a Corte de Oklahoma nos Estados Unidos se posicionou de modo a não considerar o sexo oral forçado realizado por mulheres embriagadas como estupro. Ou seja, o que o escritor e jornalista Jon Krakauer traz é apenas uma das facetas do que as mulheres americanas enfrentam quando recorrem ao Poder Judiciário para que os danos que sofreram sejam minimante reparados pelo Estado enquanto juiz. Ler os relatos de tantas vítimas e acompanhar as imensas dificuldades que enfretaram durante a empreitada de responsabilizar os criminosos que as violentaram me mostraram que infelizmente esse tema está longe de ser esgotado.

Seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, a violência sexual é um crime que continua a ser praticado reiteradamente. Isso demonstra que o que nós, enquanto cidadãos, estamos fazendo, não está sendo suficiente. Precisamos fazer mais! Repensar não só os nossos pensamentos quando escutamos relatos de estupro, como também, cobrar por parte das autoridades uma postura mais agressiva no combate a esses crimes são apenas passos iniciais para caminharmos rumo a uma sociedade pacífica onde ninguém temerá confiar no outro por ter medo de que esse outro seja um vilão pronto para destruir a sua história. Repensemos, pois.

Os estrupadores seriais escondidos em plena vista entre nós, explicou Lisak, "nutren todos os mistos e concepções equivocadas habituais sobre o estupro. Além disso, agora temos dados que demonstram que eles são mais narcistas que a média. Então eles estão imersos em sua própria visão de mundo. Falta-lhes a capacidade de ver o que eles fazem da perspectiva das vítimas. Não é como se já tivessem passado algum tempo pensando em como seria estar desmaiado e acordar com alguém o estuprando. Não é como se alguma vez tivessem se perguntado: 'Como eu me sentiria se eu adormecesse, alguém subisse em cima de mim e me penetrasse com o pênis ereto?'. Estupradores não fazem isso. Eles vivem em um mundo próprio, e no mundo deles há com frequência um tremendo senso de direito." Pág. 165

--- Isabelle Vitorino ---

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